Felisberto Hernández in: _ As Duas Histórias em O Cavalo Perdido e Outras Histórias
1. Nesta Encenação, Kammal João apresenta três sequências de desenhos, distintos e complementares, em que a delicada combinação de materiais oscila entre a aquarela, traços finos de nanquim e momentos de guache. Se as cores são mais presentes, elas são aguadas, deslizantes. Se não, são dependentes de imensos pedaços de alvura para as compor. É importante não deixar de falar da cor, de começar por ela. Ainda mais em situações em que a temporalidade notacional é tão explícita. É pela cor que se pode acompanhar a aliança entre a densidade existencial e a inscrição adequada. As questões existenciais costumam ser acompanhadas de sentimento de urgência. Kammal preserva essa dimensão ao sugerir o deslocamento, nas folhas, nas dobras. Ele usa materiais de quem tem pressa, de quem quer leveza para se mover. Por outro lado, nas perguntas que faz, parece ter paciência infinita. Além do que, a leveza do material é conjugada com o que nele se manifesta e nisso está a temporalidade estranha de ter que encontrar sempre o momento e o lugar certo. Kammal nos induz a achar que frustra sua própria paciência com as rasuras na escrita sobre o desenho. Se o faz é para usar o sentido específico da palavra mais a rasura.
4. A Carta de Navegação possui o papel de tonalidade mais escura. Em contraposição, por exemplo, à Pequena Dança, em que a superfície é clara e se mistura à representação. Se lá tudo é repleto de falta, aqui há o que se mostra. Trata-se da natureza humana como a vê Kammal, no que seria a sua versão do empirismo radical. Nela dançam as sensações, o espiralado da imaginação em suas ideias associadas, no formalismo da entrada/saída, boca/ânus, como no Freud, da defecação do sol pelo presidente Schreber. Inegavelmente é um esquematismo, mas bastante particular. Isso porque as dinâmicas de dentro e fora são primeiro encenadas, na indicação de que o dentro não é o mesmo que o fora, que há certa diferença atmosférica entre o interno e o externo ao corpo, que pode ser remetida às demais séries, como na diferença entre o dentro e o fora da casa, entre o feito e a representação etc. Para só daí sofrerem boicote. São as mesmas moléculas pictóricas, dentro e fora, mas ritmos diferentes. É preciso transpirar para passar ao fora e engolir para vir para dentro. Mas comer ou defecar não muda a natureza, para o bem ou para o mal. Donde a felicidade, em vários sentidos, do diagrama aqui concebido.
6. O vértice do Kammal são as folhas costuradas. Ainda que não tenha mais desenhado dentro delas, ali estão os bosquejos, as antecipações, principalmente de onde copia sua lógica. Essas séries se manifestam enquanto cadernos para além deles mesmos. Porque as folhas foram divididas. Elas, carregadas como se fossem cadernos. Elas simulam isso que para Kammal é importante, encenam um pouco que são as anotações / os riscos / vívidas de suas incertezas. Assim, os objetos são duplicados, as louças encontradas à noite e concebe-se a imagem de uma máquina de salvar as aparências que somos, que faz sustentar tal incômodo a meio tom. Essa cena é o modo como se vive a dúvida. “E apesar de saber disso, […] continuava pensando, [as] energias continuam a minar o pensamento, e […] sentia o mais antipático dos cansaços.” Ela parcialmente lhe quebra o ânimo, mas não a ponto de interrompê-lo. O caderno em campo expandido é uma encenação menor, no sentido de que o alemão de Kafka é uma língua menor, um modo de insistir no valor do que não pode ser decidido.
Cesar Kiraly é curador da Galeria Ibeu. Atua como professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da UFF. Autor, dentre outros, do livro Escarificação: ensimesma.
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