(Ivair Reinaldim) 1. Leila, em 1991, você participou da coletiva Novíssimos, tradicionalmente organizada pelo Ibeu. Que diferenças (ou mesmo semelhanças) percebe entre a jovem artista daquele primeiro momento e a que hoje retorna à Galeria?
(Leila Danziger) Tinha retornado a pouco da graduação em artes que fiz na França. Naquela época, sem internet e Skype, vivi de fato uma breve (mas muito intensa) experiência de exílio voluntário, porque fiquei quatro anos sem vir ao Brasil, trocando cartas que demoravam a chegar. Na volta, participei de tudo o que se oferecia: Novíssimos, Projeto Macunaíma (Funarte), Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo, e diversos salões regionais e nacionais. Também foi quando entrei para o mestrado em História Social da Cultura, na Puc-Rio. Buscava assim construir diálogo e interlocução. Mas não encontrei muito eco para as questões que tinha naquela época. Falar sobre quem eu era e quem eu sou, ou melhor, sobre quem me torno, hoje, agora, continuamente, implicaria comentar também o meio de arte no Rio de Janeiro e no Brasil, porque o artista é um ser sempre em relação (mesmo quando aparentemente solitário). Diria simplesmente que hoje sou muito mais feliz com a interlocução que construí e venho construindo. Creio que conquistar parcerias e interlocução de qualidade é o que há de mais vital para a longevidade do artista. Os diálogos que comecei a viver nos últimos anos parecem reafirmar e problematizar antigos interesses que eu descobria ainda quando estudava na França (sempre a questão da memória, do documento, do arquivo). Não posso deixar de mencionar meu querido amigo e colega Luiz Cláudio da Costa, com quem estabeleço trocas que são uma alegria e um privilégio. E também Sheila Cabo Geraldo e outros colegas do Instituto de Artes da Uerj, além de alunos de graduação e pós-graduação que se transformam em interlocutores preciosos.
2. Que relações poderiam igualmente ser traçadas entre seus trabalhos iniciais, que se constituíam a partir de práticas ligadas a procedimentos de gravação e impressão (universo tradicional da gravura artística), e sua produção mais atual, voltada para a fotografia e o vídeo?
O fio condutor de tudo é a interrogação pela memória, que é sempre construída a partir de uma perspectiva rigorosamente atual. Fiz muita gravura, mas pratiquei bem pouco a edição tradicional. A gravura me atraia pela possibilidade de estabelecer negociações entre a matriz e a impressão (como se negocia com a origem, com o passado…), e cada impressão sofria interferências e era assim diferenciada, gerando trabalhos distintos. O processo do trabalho em gravura passava por um momento de destruição quase que inevitável (e bem doloroso). Ao fim, o que me interessava era fazer uma espécie de arqueologia do próprio processo de produção: repertoriar os fragmentos e os resíduos.
Tudo o que fiz em gravura entre 1987 e 1992 ganhou o título “entre céu e ruínas”, retirado de um poema de Edmond Jabès, um poeta que eu lia muito na época. Porque a poesia rondava sempre as minhas ações. Na época eu tomava contato com o trabalho de memória da Shoah (ou Holocausto), e toda uma literatura fundamental para mim até hoje: Primo Lévi, Paul Celan, Robert Antelme, Marguerite Duras, George Perec. Esse era o subtexto dos trabalhos de então, que eram semeados por nomes (de cidades e pessoas). É verdade que uma parte da exposição no Ibeu é bem diferente mesmo de tudo o que fiz (trata-se de uma resposta precisa a uma demanda específica), mas ela também é permeada pela memória (pessoal, geracional, do bairro, da cidade).
Em relação à fotografia, creio que ela já está presente, de outra forma, em meus trabalhos com os jornais, que chamo Diários públicos. Curiosamente, nessa série, fui aproximada de artistas que trabalham sistematicamente com a fotografia. Com os Diários públicos (apagamentos seletivos feitos com jornais de diversos países – Brasil, Alemanha, Israel), o que me interessava era qualificar as imagens, conferir-lhes tempo, fazê-las vencer o esquecimento (mesmo que por pouco tempo…).
As ações de apagar os jornais me levaram ao vídeo, que compreendo sempre como a possibilidade de construir uma escritura. Na exposição do Ibeu, os dois vídeos, feitos nas janelas da frente e dos fundos de meu apartamento, procuram construir uma escritura de gestos: os dos meninos que soltam pipa nas lajes, e realizam lindas ações repetitivas, endereçadas ao alto, como que no topo do mundo; e os gestos amedrontados dos pedestres que precisam enfrentar a resistência das águas na calçada em frente ao edifício. Gosto do gesto que escapa/ desvia/ resiste às ações cotidianas.
Mas sobre as fotos do Edifício Líbano, o que me interessa mesmo é a produção da imagem, semelhante à preparação do pintor ao escolher os elementos de uma natureza morta. Acho que a matriz da maior parte das imagens na exposição é a natureza morta do tipo Vanitas. E também a pintura “Mulher à janela”, de Caspar David Friedrich, em que a personagem de costas barra a visão da paisagem (que é sugerida, mas de fato inexiste naquela pintura).
3. Além de artista, historiadora da arte e professora ligada à universidade, você possui uma produção de poesia ainda pouco conhecida. Poderia falar um pouco dessa experiência particular de escritura e como ela se relaciona com suas demais áreas de atuação?
Escrever textos que podem ser compreendidos na categoria poesia (maravilhosamente problemática) é muito recente mesmo (desde 2007). Surgiu da necessidade de escrever a partir do processo de produção em artes visuais (e não sobre o processo) e de repente adquiriu autonomia. Devo muito à escuta inteligente e generosa do Carlito Azevedo, um poeta que admiro muito e se tornou mais uma interlocução importante dos últimos anos. Vou publicar em breve, pela Editora 7Letras, um livro de ‘poesia’ (não consigo escrever a palavra poesia, sem ironia, sem aspas, sem duvidar dela, sem duvidar se me inscrevo nela…). É o gênero literário com o qual sempre tive mais intimidade, mas não me lembro propriamente de desejar escrever poesia até alguns anos atrás. É verdade que a escrita foi para mim, durante muito tempo, uma atividade constante e silenciosa. Na adolescência, eu achava que todos escreviam em seus caderninhos, secretamente, como certas práticas de higiene do corpo, que convencionamos manter em silêncio.
4. Essa exposição trata de uma vivência bastante pessoal, íntima, relacionada não só à memória familiar, mas também às negociações e processos práticos e existenciais que têm feito parte da sua experiência cotidiana. Em que momento você percebeu que seria possível compartilhar essas instâncias através dos procedimentos e da dimensão da arte? Como isso se deu?
Durante muito tempo mostrei a vista dos fundos do meu apartamento às pessoas que me visitavam e embora compartilhasse daquele assombro diante da arquitetura espontânea e tão expansiva da favela, demorei a agir. O foco do problema surgiu pela atenção aos anteparos, filtros, grades, que o edifício (e a classe média carioca de modo geral) instalou para se proteger ou simplesmente para não ver a vizinhança que crescia.
O que me interessa é o “através”, para citar um trabalho do Cildo Meirelles de que gosto muito, e, claro, as janelas, esse paradigma tão importante da pintura. Ao contrário de países frios em que as janelas devem de fato isolar e proteger o espaço da casa, nossas janelas são frágeis, uma membrana bem tênue, sem falar na nossa (con)fusão histórica entre espaço privado e espaço público. Foi quando percebi meu apartamento atravessado por todas essas questões, que surgiu a possibilidade de uma exposição (que imaginei se realizando obrigatoriamente em Copacabana).
5. Por fim, creio que a proposta poética de “Edifício Líbano” encontra-se latente em diversas possibilidades de síntese. Mas uma das mais significativas, a meu ver, está em “procurar desesperadamente reinventar o espaço da vida”. Você concorda?
Sim, creio mesmo que esse é a grande tarefa da arte. In-formar, quero dizer, conferir forma às nossas relações com o mundo. Meu projeto era fazer a exposição e me mudar do Edifício Líbano, mas acabei me reconciliando com ele. Pouco antes da exposição, meu pai morreu após uma longa doença. Ele morava no 6º andar, e minha mãe quis que trocássemos de apartamento, o que para mim é interessante pelo fato do apartamento dela ser muito maior do que o meu e assim eu ter espaço para um bom ateliê dentro de casa. Acho que mesmo que um dia eu venha a me mudar do Edifício Líbano, gostaria de manter meu espaço de trabalho lá, como laboratório ideal para processar o público e o privado, a memória e as demandas do presente.
Legendas imagens (por ordem de apresentação na entrevista):
Vista da exposição – Foto: Wilton Montenegro
Entre céu e ruínas, 1991. Monotipia, colagem e grafite sobre papel, 70 x 58 cm.
Vanitas [da série Diários públicos], 2010. Carimbo sobre jornal apagado e encadernação, 68 páginas, 65 x 58 cm (aberto).
Jardins do Líbano [todos nós], 2012. Impressão digital sobre papel hahnemühle, 100 x 72 cm.
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