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A Vida Íntima – Texto crítico de Cesar Kiraly para a exposição “Copacabana”, de Manoel Novello

Postado em: 14 novembro , 2016
A Vida Íntima - Texto crítico de Cesar Kiraly para a exposição "Copacabana", de Manoel Novello
Manoel Novello Atlantica 2016 acrilica sobre tela 138x240cm


A Vida Íntima
1. Esta escritura sobre a exposição do Manoel Novello é feita sob a lembrança de um belo livro do escritor argentino Adolfo Bioy Casares. Rememorar A Invenção de Morel com os últimos trabalhos do Novello na imaginação fez toda a diferença para o entendimento de ambos. No livro, Casares conta sobre um náufrago que se percebe numa ilha em que os habitantes desempenham sempre a mesma rotina. Aos poucos ele percebe que não são pessoas muito sistemáticas, mas imagens produzidas por uma máquina. Inclusive, por uma dessas representações, ele se apaixona.
2. Pode-se notar por que esse romance é tão invocado para se comentar os muitos desafios abertos pelo cinema na vida social. Mais ainda, o modo como essa arte repõe o tema da representação. Casares, ciente da possibilidade de tal encerramento, prepara uma armadilha. A máquina captura as pessoas que se tornam projetadas. Elas existem apenas a partir do movimento projetado. Uma forma de morte, mas também um tipo de vida eterna, como imagem condenada a repetir, se quisermos. Nesta artimanha, Casares desmonta a representação. Ela não é apenas um duplo do representado, como via de regra se a vê, mas, sobretudo, um substituto ambicioso. No caso, a representação não só substitui a pessoa, como não há mais o alguém representado, posto capturado pela máquina de projeção. Há vários filmes que retratam estrelas de cinema que se apegam à própria imagem de juventude, como é comum que alguém se prenda às gravações do passado. Os dois lados da representação se fusionam. A dimensão projetada se torna precedente à origem. Quem poderia discordar?
3. Lembrar d’A Invenção ao ver os trabalhos do Novello faz toda diferença, porque neste a projeção é abstrata. No mais das vezes se espera que a lembrança seja composta de figuras, como se a memória fosse a ilha do Casares, mas não poderia a máquina projetar figuras abstratas? No caso a máquina projeta aquilo “[…] que nenhuma testemunha admitirá que é imagem”, mas o fato é que essa imagem antes de nos fazer jurar abriga todas as sensações do capturado . Por isso pode ser tão perfeita. Então, e se a máquina projetasse a vida íntima da representação? Não o exterior, a pele, a fisionomia, e sim a condição dela, a sensação. A resposta seria uma máquina de mostrar abstrato. Está certo que nossa memória está repleta de pessoas que reconhecemos, além disso, envolvidas em romances familiares que nos concernem. Por isso até, o destino quase sempre trágico das lembranças. Ela é feita de personagens que se repetem no que temem repetir, na vida íntima das representações, os piores medos sempre se realizam. Mas se tomarmos todo o universo abstrato em que os personagens se inserem e as partes abstratas de que esses próprios personagens são feitos, então teremos o material para que a projeção seja a de cores embebidas da passionalidade do momento em que foram percebidas. A abstração das figuras que não podemos reconhecer, inchadas com as sensações que nos são inevitáveis. Uma vez que a condição de se induzir a causalidade é perdida, restam-nos as paixões e a cores, não o drama. Claro, as paixões, as cores e as formas não podem ser obtidas sem os seus contextos, mas não é necessário que o sentido das paixões, das cores e das formas seja aquele proveniente da narrativa.

4. “Não percebem o paralelismo entre os destino dos homens e das imagens?” – Casares pergunta . Se beneficiamos a composição abstrata da experiência, temos que concordar com a simbiose.  Trata-se, porém, de um destino indeterminado. Um que tem desarmada a expectativa causal. Qual a direção de todas essas cores e formas que estão sempre aos olhos, envolvedoras do corpo? Ora, as imagens seguem o mesmo caminho que seguimos, e não sabemos nosso destino. As cores e formas somente permanecem por algum tempo, depois somem. É preciso agarrar com muita vontade o romance familiar: mas as sensações nos envolvem sem esforço. Não é possível agarrar as sensações. Por isso “[…] a coincidência num mesmo espaço, de um objeto e de sua imagem total. Este fator sugere a possibilidade de que o mundo seja constituído, exclusivamente de sensações” .
5. A entrada mais comum na abstração, a mais desinteressante, é a que a compreende como arbitrariedade do nosso espírito com relação ao mundo. Ou mesmo descoberta da verdade por trás das coisas. A própria vanguarda abstracionista nunca se rendeu à forma como fato intelectual. O sintoma dessa resistência foi o aprofundamento de toda sorte de mística para explicar a presença de quadrados, triângulos e círculos nas obras de arte. A abstração do Novello nos leva à melhores instâncias. Ela pode ser compreendida pela relação com a experiência. As formas nem nos antecedem, nem são nossas contemporâneas, elas são geradas por uma das máquinas mais sofisticadas que fomos capazes de inventar: a de produzir harmonias. Pois bem, a máquina não é infalível, as representações possuem imperfeições, indeterminações e acidentes, estão sempre quebradas, mesmo que muitas casas depois da vírgula. Por isso a abstração do Novello remete tão fortemente à vida comum. Ela é construída sob plena consciência do acidente geométrico. As formas são experimentadas nos reflexos obtidos na cidade, pela observação distraída das luzes acendendo e apagando pelas janelas, nos canos aparentes subindo pelas paredes, na multiplicidade de cores nas fachadas, nas propagandas, nas roupas, na pluralidade de fendas no chão etc. Não é difícil perceber o abstrato por todos os lados da vida. Como diz Maya Deren, se vagarmos pela cidade com inocente disponibilidade, poderemos absorver a poética da abstração, sendo mais intensa quão mais imprevista. Em suma, basta sair para procurar por algo, sem saber exatamente o quê. Esta carga explicitamente impura da abstração do Novello a disponibiliza a ser lida conceitualmente.
6. Em 2014, Novello faz com que uma série de nove fotografias contraste com suas telas em acrílica. São vitrais e janelas escolhidas como quase-formas que se entregam na inocência. O abstrato impuro respira em seu anonimato. Além dessas fotografias, os títulos de suas exposições individuais flertam com o conceito, A Cidade em ProjetoA Cidade que me Guarda, e, agora, Copacabana. A cidade é o repositório da imaginação arquitetural, mas, e isso é mais sedutor, ela é, como dissemos, o duplo em que se pode observar os fragmentos de vida íntima do abstrato. A cidade se arrasta, está triste, histriônica, exultante, perdida etc. Nela estão nossas paixões reativas, impressões, cuja fisionomia é miríade de formas. Novello reúne e restaura a percepção ampla, aberta, que só nos é simples de ver quando estamos frágeis como vidro.
7. A cidade é uma das vias buscadas por Novello. Nisso torna explícito que seu abstrato é impuro, disperso na experiência. Ele é paisagem íntima perdida nas amplitudes das sensações que o distraimento nos permite. Esta forma de abstrato conceitual é curiosamente descritiva do modo como as paixões embebem o abstrato que nos ampara. Mas até aqui é como se houvesse distância entre o abstrato da intimidade e o disperso na vida comum. Novello tem procurado preencher esse espaço. Recentemente, no coreto do jardim do Palácio do Catete, sob um desafio instalativo proposto pela Isabel Portella, ele desenvolve o complemento entre a observação do mundo e a descrição do íntimo no abstrato. A instalação é composta por muitos fios de lã coloridos que desempenham trajetórias lineares, até que o peso de objetos de metal os obriga a ricochetear como se luz fossem e a fazer ângulo. Para Novello, há maciez no contato entre as sensações intrínsecas à vida e a elaboração dos planos descritivos em que as mostra em acrílica. É a sugestão de que a inocência, sugerida por Deren, é suspensiva e neutra. Ela é frágil, mas capaz de suportar o peso com que se a intercala. Ainda, é enfatizada, imprevisivelmente, por raios luminosos diretos ou intrometidos. Agora, ele repete a prática pela tensão dos fios na parte inferior da janela da galeria, como quem realiza o neutro também como um filtro, mais uma vez deixando a narrativa do lado de fora. Novello nos faz perceber que narrar e descrever são atividades distintas. A primeira se apoia em aura tendenciosa, rapidamente renunciada pela segunda. As telas possuem relevos variados em função dos diferentes tipos de tinta acrílica. As composições primam pelas transições suaves entre as cores intercaladas com benignos sustos de vermelho. A tela Atlântica rouba o ar com grandes espaços de tons mais suaves para o cinza e para o azul forrada por matizes bem escuros. Também podemos ser surpreendidos por corredores, como aqueles que nos fazem acidentalmente ver o mar por entre os edifícios. Há tanto a reconhecer, como nos nomes das ruas de Copacabana intercalados por Novello, em uma forma de poesia concreta.
Cesar Kiraly é Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da UFF e Curador da Galeria IBEU.      

A Vida Íntima - Texto crítico de Cesar Kiraly para a exposição "Copacabana", de Manoel Novello
Manoel Novello Copacabana 2016 acrilica sobre tela 138 x 240 cm

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