2. Não é sem razão que se admite que a passagem é relativa. Afinal alguém pode passar pelo que não é passagem para o outro. Por esse motivo se pode apontar no mundo pontos habituais de trânsito. O entre é a condição existencial de quem se move. Mais ainda, habita-se, ao mesmo tempo, inúmeras situações de deslocamento. A mais simples de ser percebida é a corporal, física, por assim dizer. Não importa o percurso, abstratamente, a passagem está do lado de fora, mais fora do que outras vivências. Nessa monta é que implica em risco.
3. A pronta analogia é com a rua. Se estamos nela é porque saímos de um ponto e nos deslocamos para outro: eis o risco. Em certa sorte, em trânsito, estamos à mercê. Ao mesmo tempo é fora que a vida é mais interessante. As vias do aprofundamento são arriscadas, porque nelas é que nos perdemos, somos capturados etc. Não há gosto sem ter estado do lado de fora, sem desamparo. Quão mais familiar, menos passagem. Há quem se habitue com ambientes perigosos, por mais que demandem mais tempo e o escavamento ofereça imensas recompensas, uma hora deixa de ser entre. Uma sala de chá pode ser a passagem mais arriscada do mundo. A experiência do risco implica a mesma dinâmica na vida da imaginação.
4. Não lembrava de ter essa lembrança. Será que estava imaginando? Mas qual é a diferença? Apenas olhava dentro de si e se sentia do lado de fora. Se percebia menino, sonolento por causa do movimento do carro. O dia bastante quente, sol em raios por todos os lados, amenizado tão somente pelo vento que entrava pelas janelas abertas, por causa do movimento. Aquela ventania lhe interrompia o enjoo, mas não completamente, era levado a se sentir entre bem e mal. Ao volante um homem de pouco mais do que trinta anos. Os cabelos compridos e escuros compostos com a barba também comprida e escura. A sua atenção era dividida entre a rua, que podia ser vista através de um buraco no centro do assoalho, e o antebraço do motorista apoiado, queimado pelo sol, como a denunciar o hábito de apontar o cotovelo para fora do fusca.
5. Antebraços não são bem uma parte do corpo. Eles estão entre as mãos, repletas de identidade, componentes do braço, e o braço propriamente dito. A ausência da mão não protagoniza o antebraço, além do que, é impossível, salvo melhor juízo, tê-lo sozinho. A comparação com os segmentos da perna torna a incompreensão ainda mais explícita. Há toda uma elegia de coxas e panturrilhas de homens e mulheres. Não se compõem poemas aos antebraços. À pesquisa da Stella eles são fundamentais. Acreditamos que são para o corpo, tal como ela o tem concebido, o que as passagens são para o mundo, a parte mais ousada do movimento.
7. Os antebraços estão no centro das atividades a dois e de outras tantas em que os corpos se tocam, porém não se trata nem da luta e nem da relação sexual. A pressão que um corpo faz no outro não concerne à provocação de sofrimento ou prazer. Trata-se da tomada de consciência, tão somente, de que a dor existe no mundo. E que, por isso, não se pode lidar com ela, como se fosse qualquer coisa, é preciso tensão, firmeza entre dois, para tê-la aparecida, mas nada além disso, e nada de exibição.
8. A pintura que Stella está fazendo comunica que ela encontrou a liberdade no mundo. O estabelecimento das imagens não demandam especial violência, há ajustes, é claro, mas ela sabe o que quer e se move intuitivamente nessa direção. O formato, raramente pequeno, possui uma função importante, porque é o caso de mostrar a descoberta à vontade, com movimentos amplos. As figuras jovens podem até derreter, mas, antes disso, sugam todo o fundo e qualquer concorrência que não a forma humana, porque dizem respeito aos desafios das afinidades eletivas, de ter um par. Elas não podem ter cenário, a única situação é a de confiar a própria dor ao outro. Estar entre. As roupas trazem como que uma precariedade universal, poderiam ser usadas pela maioria das pessoas, em qualquer tempo, se investidas no ofício de ser livre. A liberdade é precária, é um ensaio, justamente, porque consome o tempo de quem a vive.
9. A pintura dos antebraços, da Stella, não precisa de tanto relevo na matéria, apenas de alguns aparecimentos pictóricos improváveis, um rasgo cromático aqui e ali. Isso porque a questão é mais extensiva do que rugosa. Além do que são telas que crescem com a luz natural. Ao que seriam machucadas, como em todo exercício da liberdade. Mas como se a compreende aqui? A liberdade não podia deixar de ser um antebraço. Inevitavelmente carrega um prefixo de resistência. Porque é uma passagem, ora, plena de riscos, mais físicos que morais, porque só pode ser vivenciada entre. Não é nem fim e nem meio. Ela implica na exploração consciente da dor do outro, na medida em que este o permite, na resistência, posto também estar em trânsito. À diferença da crueldade, não é tarefa de um só.
Cesar Kiraly é curador da Galeria IBEU e professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da UFF.
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