Antes da Última Queima
§ A enfermidade tem disso, como numa cidade invadida, em que todos os que podem e são aceitos se encaminham para uma região mais alta e fortificada, ela faz com que o corpo recue. Seja lá a geografia do ponto de preservação, a estranha novidade percebida pelos que lá foram aceitos, é que, supostamente, se pode ver tudo perfeitamente. Mas o quê? Os invasores e seus barcos ainda chegando – ou mesmo a imaginação de por onde eles poderiam subir –, as ruas e seus desenhos, até mesmo o segredo das casas. Se não forem mortos na invasão, se a resistência for bem sucedida, algo é certo. Nada será como antes. Ao voltar para a vida baixa, um pedaço desses homens nunca retorna, eternamente sobreviventes se perceberão por essa perspectiva antiga. Uma febre, uma paixão, uma quase morte etc.
§ Esse fenômeno, de forma genérica, é chamado de consciência. Talvez porque no retorno os sobreviventes pensem: ‘poxa vida, eles nos viam’. Se dão conta de que aqueles que viam tinham consciência de tudo o que passava. O que é emblemático é que alguém via o que muitos nem imaginavam que poderia ser assim. Isso poderia ser tomado como muito simples, mas basta percebermos que, dependendo da complexidade da cidade, ou de como é quase impossível prever a consciência, resta a ela se mostrar de modo acidental ou se regionalizar por problemas. Há essa consciência ‘de cima’ e outras tantas ‘de baixo’.
§ Há algo que ‘as consciências’ compartilham. Digamos que quando a coisa fica difícil, no momento em que parece que a cidade será tomada, que a doença vai nos matar, se se espraia a opinião de estarmos desenganados, a consciência se convence de sua especialidade. Ela passa a achar que é outra coisa que não a cidade, na enfermidade, que é um outro tipo de corpo, ou que nem corpo é. Isso também dá estrutura para o convencimento de que todas as consciências, na verdade, dividem um núcleo e este território cosmopolita permitiria se falar d’A consciência.
§ A consciência seria a evidência de uma efetiva vaso comunicação entre regiões sitiadas, mais ainda, que tal só é possível porque essas localidades compartilham uma natureza especial, só delas. Se a matéria só guarda perspectivas, a consciência teria a chave das perspectivas, o código de decifração dos perspectivismos. Uma outra característica, compreensível ao moribundo e à cidadela sitiada, é que tal região que se convence ser consciência comunicável por dutos subterrâneos, toma-se como o fim. O fim em muitos sentidos. Como o lugar para onde todos devem rumar no caso de uma invasão, o alto do monte para os elefantes, onde todos devem se preservar no caso de enfraquecimento do corpo, a direção certa para todos que querem sobreviver ou o modo de prolongar a vida, se for o caso de sabê-la condenada. Mas também o fim não como direção, mas como término. Os habitantes sitiados decidem dizer quando tudo acabou.
§ A princípio não há problema algum. Podemos perceber: ‘pronto, acabou, precisamos encontrar outra coisa para fazer’. Não é bem assim. Quando alguém encontra o fim, não só passa a existir a hipótese da separação entre a mente e o corpo ou entre o dentro e fora, mas todos os esforços são conduzidos pela manutenção do fim. Já sabemos o que acontece depois do fim. Depois do fim é a produção dos efeitos ocasionados por perseguirmos o fim até o fim. Depois do fim é apenas o fim. Por essa razão, essa não é a última queima, mas a que a precede. A que pode nem acontecer.
§ Se nos persuadirmos do fim, tudo no nosso corpo que rivaliza com a consciência é tomado como doença e todos aqueles que chegam na cidade são inimigos. Mesmo invadidos podemos nos misturar entre os visitantes, não nos escondermos no lugar mais alto, não termos condição de dizer quem é amigo e quem é inimigo, e mantermo-nos num buraco qualquer, onde os passantes seriam todos muito parecidos. O pior que pode acontecer a um corpo ou a uma cidade é que a novidade se comporte como fim, porque se assim for seremos tomados como inimigos e tudo o que poderemos fazer é suplicar não haver depois do fim, mas tão somente véspera.
§ Duas operações do pensamento. As distinções, mostrar as diferenças. Ou todas as coisas em todas as coisas. No fim, na decifração suposta de todas as perspectivas, de suas lógicas, todas as coisas estão em todas as coisas. Mas há uma característica marcante desse estado: não há regra. Mesmo depois do fim, tudo é fim e tal não pode ser transgredido. Apenas com regra há transgressão. Se todas as coisas são distintas é como se encontrá-las fosse atividade fútil. Então há uma terceira opção: algumas coisas estão em algumas coisas. Esta é a operação antes da última queima, algo que se dá no ontem e não no amanhã. É preciso descrever o mundo com atenção, para perceber como se ligam os incidentes, mostrar as regras das lógicas desencavadas.
§ Para isso, Versieux acrescenta esculturas tubulares que passam a fazer companhia à coluna do espaço. Como se pode desconfiar, como uma pedra da Gávea, a coluna já estava lá, a questão é explorar uma outra solução à presença que não apenas ignorar ou destruir. Ignorar é muito comum e destruir é imprudente, posto que não se trata de uma coluna qualquer, mas uma de sustentação. As grandes esculturas de carvão e gesso se disfarçam à imagem do sólido irremovível, de modo mais orgânico do que uma simples casa construída em volta de uma árvore. Uma estranha máquina abstrata começa a operar. Daí este vértice, que atravessa e serve de esqueleto a todo o edifício, passa a servir de índice analógico a percorrer o mundo. Sim, por sua ereção, mas sobretudo pela quase interminável previsibilidade de combustão dos materiais. Na pilha de pneus ou nas faltas do acostamento etc. O concreto, resolvido que é em si mesmo, lembra-se das matérias imaturas como o carvão e a borracha a sempre preverem uma próxima queima.
§ Versieux busca a relação de algumas coisas com outras, sob regras, todas as coisas podem ser ligadas a todas as coisas, mas derivam de trabalho atento da imaginação. A imaginação se depura descrevendo. Daí se faz capaz de encontrar vínculos consistentes. A coluna de sustentação encontra nas outras de carvão e gesso como que pistões de locomotiva. É para todo o edifício se encher de fumaça como uma máquina a vapor a cuspir fuligem. Versieux deseja instituir a beleza vista por Zola nas máquinas, exibida sobretudo no Germinal. O prédio realiza com seus pistões o movimento irradiado pela coluna, apenas frustrado por não lhe sobrar espaço. No Germinal as máquinas e os homens compartilham uma natureza mais propícia às máquinas, as máquinas estão pretas, os homens estão pretos, o pescoço da burguesa guarda as marcas das mãos pretas sobre pele rósea, os pulmões dos homens pretos, pelo carvão inalado. Há algo de grandioso nessa força inorgânica que encontra cumplicidade em nós. A vida é branca de página alva da disponibilidade e a imaginação é negrume de instituição de forma e traços. Busca-se, então, algo depurado. Que o branco se indisponibilize, entregando as cores que agrega, o preto se disponibilize, de modo a deixar de ser não, para ser cor também. Zola, imagino, queria o glorioso dos nossos pulmões feitos em pedra a nos fazer cuspir sangue. Versieux nos oferece uma melancolia não tão dura. Ora, seria enganoso tomar o ontem menos rigoroso do que o fim, a diferença entre um e outro é a má consciência que nasce do saber suposto, os falsos inimigos, a pretensa guerra contínua etc. Assim, a fuligem que merecíamos para completar nossa metamorfose carvoeira, torna-se em manchas negras sobre o sólido. Se a melancolia é mais doce, isso não quer dizer que ela não tenha formas de nos seguir até em casa, aos nossos sonhos, o evitamento de encarar a fuligem nos põem perseguidos por uma espécie de pós-negrume e pós-fuligem. Trata-se não dos micro fragmentos do carvão consolidando a mineralidade dos pulmões, e sim micro fragmentos de imagem de carvão a trocar de lugar com partes do nosso corpo, compondo-se com aquelas de gesso. Os pistões do edifício se tornam pilhas de pneus, encarvoadores de corpos, em momentos bárbaros de nossa sociabilidade, mas também porque ninguém nos objetaria que a borracha, para além do negrume, é um tipo de carvão. No contexto, também seria fácil aceitar, com toda crítica possível, que o negro é usado como um misto de carvão / borracha, com todo o malefício de tal tipo de queima.
§ Para os que pedem uma nova esperança, ao desespero de se pular direto para depois do fim, Versieux nos propõe passar por uma terapia do escuro, passar por ele para encontrar a tranqüilidade. A felicidade se faz possível só depois de uma grande volta, na qual o que se aprendeu foi suportar a ver sem o álibi da insensibilidade. É preciso entender o calor do frio, para habitar os desafios do ontem. Há tanta coisa para fazer, tantas imagens para entender, tanta dor para exumar, que perder tempo se tornando apenas frio, com todo frio que há no mundo, é inadmissível. Uma nova esperança é apenas o nome de uma fábrica de cimento. A transformação é tão confiável quanto a queima do eucalipto. Por isso o mérito dessa exposição em não tergiversar por caminhos que não a terapia no escuro, do escuro. Ao invés da pregação do fim, a dura pergunta: quão distante, a partir da véspera, tem que ser para ser futuro? Apenas sustentando essa questão nos será possível caminhar pela noite como se deve.
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Cesar Kiraly é professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da UFF. Atua como curador da Galeria IBEU e como editor do Caderno-Revista de Poesia 7faces. Autor, dentre outros, do livro Ceticismo e Política.
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