Dada a eminência, a fratura e o colapso de toda superestrutura, naufragamos!
Pensar nas experiências de naufrágio é ir além da representação desse acidente náutico, e olhar devidamente para os processos de arruinamento que acometem todo corpo, toda causa e todo objetivo; e que dadas as circunstâncias da travessia, da errância e da deriva, acaba por afundar, real ou metaforicamente, em si mesmo.
O arruinamento atravessa todos os objetos e imagens que compõem essa exposição, prenunciando no conjunto de trabalhos um naufrágio eminente e ostensivo da visão. O arruinamento do tempo sobre os corpos, processos e materiais, nada mais nos alerta, do que para as ruínas de nosso tempo, que acontecem no agora, diante de nossos olhos.
Os objetos encracados manualmente, os desenhos de observação do mar sobre os cadernos, as catalogações imaginárias dos seres marítimos, os processos de corrosão da gravura em metal – todos estes procedimentos partilham de uma intenção mimética em falência, que camufla e revela ao mesmo tempo, o afundamento que as imagens detonam em nossa própria imaginação.
Em um sentido mais profundo daquilo que o naufrágio pode representar, está o despertar de uma consciência crítica sobre o mundo em crise a nossa volta, onde uma atitude em caráter de urgência precisa ser tomada, pois tudo ao redor começa a afundar lentamente e desaparecer do campo visual, sem deixar vestígios na superfície dessa realidade líquida.
Recolher naufrágios é uma forma falida de falar do mar avassalador, de falar sobre forças incomensuráveis que sublimam toda travessia. É necessário assumir tanto nas imagens, como em certas situações da vida, que o afundamento é inevitável.
Coletar naufrágios é colecionar e expor traumas onde as imagens assumem um poder mordente de corroer o visível e afundar a realidade. Frente à arrebentação das margens do real nas linhas da vida, frente ao inesperado afundamento cotidiano – como sobreviver a um naufrágio?
Márcio Diegues, Rio de Janeiro, 03/05/2020
| “Como sobreviver a um naufrágio – Referências e Literaturas”: série dedicada a postagens relacionadas à pesquisa do artista Márcio Diegues, contendo trechos e anexos de sua dissertação “Entre o mar e o vento: o desenho como membrana”, apresentada no PPGAV-EBA-UFRJ em 2017. Todos os textos são de autoria de Márcio Diegues. Este conteúdo também está disponível no
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