Fremer passado:
Aquela parede canta. Na primeira vez que a assisti foi nos idos dos 90. Tinha o aspecto de um beco sem saída. Um exaustor industrial parecia compor o miolo daquilo tudo. Poderia ser uma usina. Poderia ser um depósito. Tudo devidamente pavimentado e enxugado. Árvore ali, só se fosse espremida, como aquela amendoeira a mostrar galhos de folhas amarelas e ressequidas. À sombra dos muros, sempre à sombra dos muros. Era a forma que a natureza encontrava para continuar respirando à dura pena.
Naquela época costumava usar o espaço gigante do estacionamento para soltar pipa com meu pai, aproveitando que aos domingos não havia carro algum por ali. Quer dizer, talvez existisse um ou outro, mas nada que impedisse de bater as sandálias sobre aquele solo comprimido. “Supermercado Três Poderes”, era o que lia quando erguia a cabeça para cima. Encostado ao nome, gravetos indicavam as silhuetas de um boneco, com uma cabeça que imitava o globo terrestre. O charme dos pés cruzados era o que mais gostava. Pode-se dizer que havia uma certa ironia naquele charme…
Mas o fato é que aquela parede lá dos fundos cantava! E era agridoce o seu canto, não pela parede em si, mas por compor aquele emaranhado único de resquícios que davam saudade. À frente, uma pequena ponte de concreto conectava aquele espaço a uma região residencial. Sim, pois há um córrego onde o esgoto é despejado logo ali, onde tantas vezes me dispersei nas ondas frívolas…
Uma pintada grade de ferro bloqueia a passagem quando o mercado está fechado. Desnecessária, pois na falta daquela pontezinha, basta caminhar dez minutos a mais para se chegar ao mesmo lugar. Sabe-se lá o quanto as ruas sem saída servem a um morador antigo….
Vinte anos depois, as cores retomavam àquela parede. Trazem as cores da grade de ferro e nenhuma amendoeira. Finalmente a apagaram com o mata-borrão. Dormirá sobre o solo oco até o dia em que, por si só e esquecida, redescobrirá o caminho da luz, num novo canto redobrado pelo farfalhar.
Foto: Ateliê do artista Márcio Diegues (2020)
| “Poesia e Arte em casa” é resultado de uma ação realizada pela
Galeria de Arte Ibeu em sua página no Instagram. Esta série de postagens tem como objetivo aproximar a obra do artista Márcio Diegues à produção poética de diversos autores que se relacionam com a temática do naufrágio e do isolamento. |