(ao meu amor)
Querido Romeo,
Essa é minha primeira carta para você, e a escrevo na ocasião da primeira exposição individual da sua mãe depois do seu nascimento. Apenas um dos trabalhos de “Nada: porque é começo da palavra esperança” foi feito depois da sua concepção, mas essa mostra, além de ser fruto de uma investigação da sua mãe sobre a relação entre nada e potência, tem muito a ver com você.
Quando você tinha ainda poucos dias de vida, seu avô Euclides Redin veio do Rio Grande do Sul lhe visitar, sua bolinha carioca cheia de bochecha. Você talvez ainda não saiba, mas seu avô é um intelectual gaúcho que dedicou a vida a pensar política e educação. Há pouco tempo, a biblioteca do vovô, que guardava 50 anos de leitura (além de documentos, manuscritos e sua forma própria de organizá-los) sofreu um incêndio após uma tentativa frustrada de roubo. O que não foi consumido pelo fogo foi destruído pela água dos bombeiros. Seu avô falou muito do som terrivelmente alto das chamas que atravessavam a casa por onde havia antes um telhado. A cadelinha dele, que talvez em breve você conheça, está até hoje traumatizada e não sai de trás do seu avô. No dia seguinte, quando sua mãe chegou, ela registrou em fotografias as ruínas e, algum tempo depois, as transformou em cartões postais. Sua mãe sempre acreditou que teria a biblioteca do seu avô como uma forma de acessá-lo e redescobri-lo, mas, com a série de postais chamada “Penúltimas”, conseguiu transformar a angústia do vazio deixado pela destruição em imagens feitas para serem enviadas por correio: testemunhamos, com esse trabalho, fluxo brotar de onde parecia não ter mais nada.
Existe uma grande responsabilidade em escrever sobre o trabalho da sua mãe. Os textos escritos por ela mesma são, sinceramente, das coisas mais bonitas que já li. Uma mistura (ao mesmo tempo complexa no conteúdo e simples na forma) de texto acadêmico, literatura e crítica da cultura, num encontro muito singular entre utopia e melancolia. Para você saber, peguei alguns livros na biblioteca de sua mãe: “A Dobra” do Gilles Deleuze, “a forma-formante” do Manoel Ricardo de Lima, “breves notas sobre as ligações” de Gonçalo M. Tavares e “A partilha do sensível” do Jacques Rancière. Talvez eu devesse ter pego algum do Roland Barthes. Sua mãe é louca por Roland Barthes.
Romeo, no trabalho que intitula esta exposição, sua mãe apagou todas as letras j´s do nome de Nadja no livro homônimo de André Breton em que ele vai atrás dessa mulher pela qual ele havia se apaixonado em Paris. Sua mãe também procurou por Nadja, subtraiu-lhe os j´s, e o resultado foi Nada, ou a própria procura, ou o próprio desejo ou a vontade de encontrar.
Há também, nessa exposição, um trabalho que apresenta instruções propostas por sua mãe para que pessoas encostem uma de suas orelhas na orelha de outra pessoa. Um dia, você vai estar um pouco maior e vai poder performar o que te conto. Duas orelhas se escutarem… parece que deveria haver uma anulação! Dois órgãos feitos a receber, mas dispostos em des-utilização proposital. Você, como o bom canceriano que é, vai logo perceber que, do suposto vazio, nasce uma harmonia entre duas batidas, entre dois corações. Mas apenas a força de se permitir colocar-se a perceber o outro se colocando a lhe perceber já é capaz de criar, onde havia vazio e anulação, tudo que uma relação pode criar.
Essas instruções iluminam a série de trabalhos chamada “escuta da escuta” da qual fazem parte objetos, instalações e desenhos. Nessa exposição, está presente a obra “Escuta da escuta ( A surdez de quem ouve:cantos)” em que duas conchas (daquelas impressionantes em que se escuta o som do mar) são postas de forma em que suas aberturas se encontram. Imagine: dois oceanos se encontrando aqui dentro da Galeria do Ibeu – e só os próprios oceanos vivem isso! Num outro trabalho, são flores diversas que em analogia fazem os ouvidos de uma corrente de escutas de escutas. E há um par de desenhos bastante especial. Em um deles, duas casas estão de frente uma para a outra, e suas portas se encontram. Todo encontro entre dois “dentros” acontece na habitação da superfície do outro. No segundo desenho, também aparecem duas casas, porém, nesse que é único trabalho da mostra feito depois de você já estar dentro da sua mãe, as portas ainda se encontram, mas com um “dentro” dentro de outro “dentro”. Não consigo imaginar nenhuma situação pra isso que não a gestação.
Essa exposição é preenchida por suspiros utópicos e poéticos de quem sente brilhar e doer a fome de mundo, a fome de outro. Toda essa exposição, Romeo, trata da infinidade de belezas que podem surgir de onde menos se espera. E, na verdade, foi assim que você, seu gorduchinho, veio até nós: ninguém esperava. Mas, sendo quase todos esses trabalhos feitos antes de você, talvez sua mãe já soubesse que a gente não te esperava, mas que – como na vida – perdíamos por não esperar.
Bernardo Mosqueira
Outubro 2014